- Eu não sei fazer mais nada.
- Como?!
- A única coisa que sempre fiz foi
tratar dos meus filhos.
Tinha vinte e sete anos. Um número
ímpar que lhe dizia tanto como uma vida inteira que se resumia a um Curriculum
Vitae de frustração. Nem uma oportunidade. Susana saiu de mais uma entrevista
de emprego, que lhe tinham arranjada, sem esperança nenhuma. Desceu pelas
escadas, sentindo aquele cheiro estranho a velho entranhado nas paredes. Não
aguentaria três andares num elevador com dois metros quadrados. Abeirou-se da
estrada, sentou-se no passeio. Imaginou o resto da sua vida como uma
inexistência plena de nada.
Vivera na capital. Arredores, num
cubículo arranjado pelo homem que tomou conta dela. Como não tinha família e
conhecera aquele homem aparentemente seguro de si e do seu interesse, ela
apaixonou-se. Mais velho trinta anos, coisa que nem imaginou ser importante.
Tendo ela vinte anos na altura que o conheceu, suspirou num porto seguro que a
protegesse, sonhou que a amasse, a fizesse feliz e assim constituiriam família.
Assim foi. Susana engravidou algum
tempo depois de começar um relacionamento com ele. Foi uma felicidade
verdadeira. Ele sustentava-a. Entretanto, ela conseguira encontrar um trabalho
a lavar e limpar as zonas partilhadas de um prédio: escadas, sótão, sala de
reuniões, elevador, etc.
Quando teve o filho, deixou de
trabalhar, dedicando-se exclusivamente ao menino. Chamou-lhe Simão. O pai do
rapaz aparecia cada vez menos, desculpando-se sempre com o trabalho. Um dia,
estando ela já tão estoirada por não conseguir dormir, pois o miúdo não lhe
dava uma noite descansada, pressionou aquele a quem chamava de marido, um
companheiro meio ausente meio presente e perguntou-lhe, encarando-o:
- Tens outra?
Ele baixou a cabeça. Não disse
nada. Sentou-se na beira da cama. Ela abanou-o compulsivamente.
Então, ele resolveu contar-lhe:
- Sempre tive outra família, mas
quando te conheci não consegui resistir aos teus encantos.
Susana chorava compulsivamente.
Simão berrava no berço. O seu pai pegou nele ao colo, beijou-o, colocou-lhe a
chupeta e ele acalmou. O som do silêncio também ajudou Susana a raciocinar.
- Quando esperavas dizer-me?
- Não sei. Quando engravidaste,
pensei em dizer-te logo, mas depois, estavas… estávamos tão felizes, que não
queria acabar com esta emoção.
- Tens outra família mesmo?
- Tenho.
Receando perder a (in)dependência,
acabou por aceitar viver assim desde que ele nunca lhe falasse da outra
família. Viveria assim na ilusão de felicidade, embora, na ausência dele, chorasse
incessantemente em silêncio.
Teve mais duas filhas.
Cinco anos depois, tendo ela vinte
e cinco anos, ele faleceu. Ficou viúva sem alguma vez ter casado como o seu
sonho de infância. Ficou viúva sem ter tido um marido. Ficou viúva e não
poderia recorrer a nada, sem herdar nada.
Sem dinheiro para a renda e não tendo
como sustentar três crianças, foi levada para um lar no Norte do país. Um lar
onde acolhiam mães com as suas crias e ajudavam-nas a sobreviver.
Na verdade, ela sentiu-se bem
naquele espaço asseado e acolhedor. Pensava muito no conforto que os seus
filhos tinham ali, senão estariam na rua a apanhar frio.
Matriculou-os num Jardim de
infância IPSS que trabalhava em concordância com o Lar onde residia, assim como
o orfanato das crianças, tendo assim todas as condições para ir procurar
trabalho. O Simão já tinha quase cinco anos.
Viviam na grande cidade do Porto.
A relação da Susana com as Educadoras
de Infância era muito saudável e positiva, pois Susana estava sempre preocupada
com o bem-estar das crianças.
Tinha uma excelente relação com os
seus filhos. Havia muito carinho naquela família. Eram muito afáveis.
Susana passava o dia a procurar
emprego. Ela não se importaria de fazer o que quer que fosse, pois tinha-lhe
sido dito que a sua estadia no lar era temporária. Então, teria que arranjar
uma casa urgentemente e um emprego para sustentar todas as despesas.
Susana procurava emprego, qualquer
trabalho incansavelmente. Todos os dias à noite, chorava devido aos calos nos
pés por tanto percorrer a cidade a pé, mas principalmente por não ter saída.
Contou a sua história à Educadora
de Infância do seu filho mais velho, que a informou que o seu filho iria para a
escola (1º Ciclo – Ensino Básico), pois estava quase com seis anos. Recearam ambas
pelo futuro de uma criança que tinha tantas capacidades, mas que estava em
risco. Os mais pequenos nem se apercebiam da realidade. O menino lia os olhares
das suas referências.
Alguns meses depois, a Susana já
tinha arranjado casa para alugar com o dinheiro de algumas horas que conseguiu a
trabalhar na limpeza de casas de particulares. Estava mais animada. Ainda tinha
um longo caminho a percorrer, mas o risco de ser expulsa do Lar já seria menor.
A situação parecia controlar-se com ajuda exterior para alimentação.
Preparava-se para se mudar. Não
tinha emprego.
Estando já o Simão na escola,
orgulhosamente no primeiro ano, a aprender a desenhar as vogais, a lê-las e a
cantar os ditongos, a correr e a brincar com os colegas, aconteceu o que mais
se temera.
Susana foi chamada a tribunal para
ser informada de que os filhos lhe seriam retirados e, nesse mesmo dia, ela
deveria deixar o Lar, pois era só destinado a mães com filhos.
Foi a polícia primeiro buscar o
Simão à escola, sem lhe explicar nada. A única reação do menino foi chorar sem
saber o que lhe estava a acontecer. Seguidamente, foram ao Jardim de Infância
buscar as duas meninas. Quando ele as viu, acalmou-se, mas ficou sem saber
entender. Foram levados para um orfanato em S. João da Madeira, quando no Porto
havia muitos e ficariam mais próximos da mãe. Susana nem teve tempo de se
despedir. Quando chegou à escola e ao Jardim para se despedir, eles já tinham
sido levados.
Recolheram os poucos pertences
daquela mãe em sacos de plástico. Não teve direito nem a mais uma única dormida
sequer.
Mas, o tribunal assim decidiu. As únicas
referências que aquelas crianças tinham eram as pessoas da escola, a mãe e do
lugar onde viviam. Foi-se-lhes retirado tudo.
Imagino que o Simão não deve ter
cantado mais os ditongos durante muito tempo.
Só imagino, pois não sabemos mesmo
o que lhes aconteceu.
Parece-me que aquela mãe, não
tendo ninguém no Porto… acredito que deve ter sido acolhida por uma ponte
qualquer…
(Baseado em factos reais.)
Eli Rodrigues
16 comentários:
Êli conheci uma moça que vivia com alguém que tinha outra família, ela sabia e sujeitava-se a uma visita de vez em quando. Tinham uma filho. Nunca percebi bem como alguém pode viver assim. O amor é o culpado mas como se pode viver sabendo que a pessoa que se ama nos põe em segundo lugar, pouco ou nada podemos partilhar com ele já que está sempre ausente e incontactável, temos que resolver tudo sozinhas? Não será melhor estar sozinha? Eu preferia. Beijinhos
Tenho andado alheado e por isso me penitencio,
se algum jantar de natal surgir na invicta conta comigo, agora os ares de Lisboa não me fazem muito bem,
:)
cumprimentos,
JD
Numa altura da minha vida e acompanhando o meu namorado assisti num velório a uma cena digna de filme; uma senhora e uma menina absolutamente desconhecidas da familia e dos amigos que velavam o morto, aproximaram-se do caixão a chorar. A viúva pediu à filha que fosse saber quem eram e como conheciam o marido. A filha não tendo animo para o fazer pediu ao meu namorado que o fizesse.
E assim ficámos a saber da dupla vida do morto. Aquela era a sua familia secreta. Quanta tristeza...
Numa altura da minha vida e acompanhando o meu namorado assisti num velório a uma cena digna de filme; uma senhora e uma menina absolutamente desconhecidas da familia e dos amigos que velavam o morto, aproximaram-se do caixão a chorar. A viúva pediu à filha que fosse saber quem eram e como conheciam o marido. A filha não tendo animo para o fazer pediu ao meu namorado que o fizesse.
E assim ficámos a saber da dupla vida do morto. Aquela era a sua familia secreta. Quanta tristeza...
Meu deus, que horror, que dor.
Já não bastava o que lhe aconteceu, agora é julgada de um momento para o outro, se calhar sem ser ouvida!
Penso naquele maldito julgamento onde se cometeu um crime, agora dão-no como maluco, pilhas de gente e papeis. Gente assim não faz falta. Agora essa Mãe! E os filhos numa instituição? Coitadas não pediram para nascer nem para serem julgados e já andam por becos.
Muito sentido, conheço muitos casos idênticos.
Bj
sem palavras porque +e tudo muito triste....
Brown Eyes
Eu também preferiria, mas ambas sabemos que as pessoas não têm todas a capacidade de se impôr, tal como outras...
James Dillon
No ano passado fui ao da invicta. Quando for o próximo, lá estaremos! :)
O Sexo e a Idade
Que tristeza mesmo... para todos! :S
S*
Tal e qual, pensando naquelas crianças...
Manuel Luís
Foi por isso mesmo que eu não quis deixar de escrever esta história tão bem real!
© Piedade Araújo Sol
Pois é mesmo...ficamos assim a pensar mesmo nisso.
Que história comovente! Infelizmente casos semelhantes acontecem amiúde. Os tribunais em vez de obrigarem o estado a ajudar uma mãe nessas circunstâncias, castigam os filhos, tirando-lhes a mãe e colocando-os numa espécie de prisão, quando talvez ficasse mais económico cederem uma casa à família para que as crianças num lar familiar.
Beijos
Que história comovente! Infelizmente casos semelhantes acontecem amiúde. Os tribunais em vez de obrigarem o estado a ajudar uma mãe nessas circunstâncias, castigam os filhos, tirando-lhes a mãe e colocando-os numa espécie de prisão, quando talvez ficasse mais económico cederem uma casa à família para que as crianças crescessem num lar familiar.
Beijos
Diamantino
Exatamente.
O pior é isto continuar a acontecer!
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