Agora nem nómada, nem emigrante.


sexta-feira, novembro 08, 2013

Broken



Ella desejava muito ser lida, por isso, no final do dia de aulas, num grande quadro negro, quase cinzento pelo tempo que não lhe perdoou a erosão, escrevia sobre os seus sentidos. Olhava em redor, primeiramente, numa busca demorada por uma inspiração que fingia vir-lhe de fora. Depois, soltava o grande vulcão em que diariamente vivia, reprimia e gemia de grutas ocas, como de um bramido chegasse. Escrevia textos quase longos, porque não se continha na sua necessidade de criar o que as letras lhe ditavam. Munia-se de uma burka negra e escrevia. Durante anos, o vento ia apagando o que a noite lhe tinha soletrado. Chegando de manhã à escola com soalho feito de terra e teto tatuando o céu, olhava a árvore quase seca onde o quadro estava pendurado e pensava como seria possível que todos os seus temores, gemidos e lamentos fossem sempre apagados sem obter qualquer resposta. Numa noite qualquer apercebeu-se que tinha sido lida:

«Peço desculpa por sujar o seu chão com as minhas botas enlameadas, mas tive que ficar um pouco contemplando as estrelas em seu quadro. Voltarei a sujar seu solo se assim me permitir.»

Ella corou quando leu. Quem seria aquele que lhe teria deixado uma mensagem?! Saberia quem seria a aluna que escrevera durante a noite no quadro da escola da aldeia naquela África tão profunda?! Ella ficou a pensar naquilo e de vez em quando recebia mensagens sempre com um toque de personagem. 

Começaram a crescer-lhe umas borboletas debaixo da burka, que de cada vez que chegava de manhã, buscava sempre uma resposta do tal desconhecido. Pensava ser um sábio, talvez um dos anciões da aldeia…

Durante um período, deixou de receber qualquer resposta aos seus textos pouco elaborados. Esqueceu a sua existência. Voltou a escrever palavras tristes sobre a vida que levava sempre ali tão longe e distante de todo o mundo que sonhava conhecer. Falou de saudade.

Num dia qualquer, chegando cedo à escola, onde já era professora, tendo sido a primeira a romper a manhã, vislumbrou alguém a afastar-se do quadro. Correu para ele e deparou-se com uma nova mensagem passados tantos meses. Ele sentia-se enternecido com as suas palavras de saudade e sentiu-as como suas.

Então, ela resolveu deixar-lhe uma resposta escrita em papiro, debaixo da raiz mais grossa da árvore. Ele teria que perceber através de uma mensagem codificada escrita no texto que teria então uma carta para ele.

Ella acordava sempre com uma grande ansiedade e sem sono algum, começando a ser sempre a primeira a chegar. Durante alguns meses trocavam assim correspondência sem nunca se encontrarem. Ela sabia que ele a via ao longe tapada pela burka, mas nunca sabia qual dos homens era aquele sábio que tão belas palavras desenhava, apesar de uma vez já o ter visto de costas a afastar-se.... 

O Homem terminava as missivas dizendo-lhe que o pensamento se prendia nela.

Numa noite qualquer, esgueirou-se da cama, calcou a calçada e viu-o a escrever um recado em cima do joelho. Cigarro no canto da boca, olhar concentrado, livro debaixo do braço. Arrepiou-se. Imaginava-o mais velho, a primeira impressão foi de choque mas no instante imediato encantou-se com aquele Homem, mal ele lhe sorriu.

Pé ante pé, devagar e com muito medo, Ella aproximou-se vestida com uma burka que tinha exatamente a cor dos olhos dele. A conversa demorou até amanhecer. Trocaram algumas confidências sem se comprometerem. Sentiam-se unidos pelas palavras faladas e escritas. Ao terceiro dia de longas conversas, ela receosa, mas corajosa, resolveu destapar-se.
Então, ele disse-lhe:

«Atrai-me a tua beleza interior, mas a exterior não.»

Ele desfez-se em desculpas e partiram-se ambos os corações.


Eli