Agora nem nómada, nem emigrante.


quinta-feira, novembro 22, 2012

Tribunal dos Nadas




- Eu não sei fazer mais nada.
- Como?!
- A única coisa que sempre fiz foi tratar dos meus filhos.
Tinha vinte e sete anos. Um número ímpar que lhe dizia tanto como uma vida inteira que se resumia a um Curriculum Vitae de frustração. Nem uma oportunidade. Susana saiu de mais uma entrevista de emprego, que lhe tinham arranjada, sem esperança nenhuma. Desceu pelas escadas, sentindo aquele cheiro estranho a velho entranhado nas paredes. Não aguentaria três andares num elevador com dois metros quadrados. Abeirou-se da estrada, sentou-se no passeio. Imaginou o resto da sua vida como uma inexistência plena de nada.
Vivera na capital. Arredores, num cubículo arranjado pelo homem que tomou conta dela. Como não tinha família e conhecera aquele homem aparentemente seguro de si e do seu interesse, ela apaixonou-se. Mais velho trinta anos, coisa que nem imaginou ser importante. Tendo ela vinte anos na altura que o conheceu, suspirou num porto seguro que a protegesse, sonhou que a amasse, a fizesse feliz e assim constituiriam família.
Assim foi. Susana engravidou algum tempo depois de começar um relacionamento com ele. Foi uma felicidade verdadeira. Ele sustentava-a. Entretanto, ela conseguira encontrar um trabalho a lavar e limpar as zonas partilhadas de um prédio: escadas, sótão, sala de reuniões, elevador, etc.
Quando teve o filho, deixou de trabalhar, dedicando-se exclusivamente ao menino. Chamou-lhe Simão. O pai do rapaz aparecia cada vez menos, desculpando-se sempre com o trabalho. Um dia, estando ela já tão estoirada por não conseguir dormir, pois o miúdo não lhe dava uma noite descansada, pressionou aquele a quem chamava de marido, um companheiro meio ausente meio presente e perguntou-lhe, encarando-o:
- Tens outra?
Ele baixou a cabeça. Não disse nada. Sentou-se na beira da cama. Ela abanou-o compulsivamente.
Então, ele resolveu contar-lhe:
- Sempre tive outra família, mas quando te conheci não consegui resistir aos teus encantos.
Susana chorava compulsivamente. Simão berrava no berço. O seu pai pegou nele ao colo, beijou-o, colocou-lhe a chupeta e ele acalmou. O som do silêncio também ajudou Susana a raciocinar.
- Quando esperavas dizer-me?
- Não sei. Quando engravidaste, pensei em dizer-te logo, mas depois, estavas… estávamos tão felizes, que não queria acabar com esta emoção.
- Tens outra família mesmo?
- Tenho.
Receando perder a (in)dependência, acabou por aceitar viver assim desde que ele nunca lhe falasse da outra família. Viveria assim na ilusão de felicidade, embora, na ausência dele, chorasse incessantemente em silêncio.
Teve mais duas filhas.
Cinco anos depois, tendo ela vinte e cinco anos, ele faleceu. Ficou viúva sem alguma vez ter casado como o seu sonho de infância. Ficou viúva sem ter tido um marido. Ficou viúva e não poderia recorrer a nada, sem herdar nada.
Sem dinheiro para a renda e não tendo como sustentar três crianças, foi levada para um lar no Norte do país. Um lar onde acolhiam mães com as suas crias e ajudavam-nas a sobreviver.
Na verdade, ela sentiu-se bem naquele espaço asseado e acolhedor. Pensava muito no conforto que os seus filhos tinham ali, senão estariam na rua a apanhar frio.
Matriculou-os num Jardim de infância IPSS que trabalhava em concordância com o Lar onde residia, assim como o orfanato das crianças, tendo assim todas as condições para ir procurar trabalho. O Simão já tinha quase cinco anos.
Viviam na grande cidade do Porto.
A relação da Susana com as Educadoras de Infância era muito saudável e positiva, pois Susana estava sempre preocupada com o bem-estar das crianças.
Tinha uma excelente relação com os seus filhos. Havia muito carinho naquela família. Eram muito afáveis.
Susana passava o dia a procurar emprego. Ela não se importaria de fazer o que quer que fosse, pois tinha-lhe sido dito que a sua estadia no lar era temporária. Então, teria que arranjar uma casa urgentemente e um emprego para sustentar todas as despesas.
Susana procurava emprego, qualquer trabalho incansavelmente. Todos os dias à noite, chorava devido aos calos nos pés por tanto percorrer a cidade a pé, mas principalmente por não ter saída.
Contou a sua história à Educadora de Infância do seu filho mais velho, que a informou que o seu filho iria para a escola (1º Ciclo – Ensino Básico), pois estava quase com seis anos. Recearam ambas pelo futuro de uma criança que tinha tantas capacidades, mas que estava em risco. Os mais pequenos nem se apercebiam da realidade. O menino lia os olhares das suas referências.
Alguns meses depois, a Susana já tinha arranjado casa para alugar com o dinheiro de algumas horas que conseguiu a trabalhar na limpeza de casas de particulares. Estava mais animada. Ainda tinha um longo caminho a percorrer, mas o risco de ser expulsa do Lar já seria menor. A situação parecia controlar-se com ajuda exterior para alimentação.
Preparava-se para se mudar. Não tinha emprego.
Estando já o Simão na escola, orgulhosamente no primeiro ano, a aprender a desenhar as vogais, a lê-las e a cantar os ditongos, a correr e a brincar com os colegas, aconteceu o que mais se temera.
Susana foi chamada a tribunal para ser informada de que os filhos lhe seriam retirados e, nesse mesmo dia, ela deveria deixar o Lar, pois era só destinado a mães com filhos.
Foi a polícia primeiro buscar o Simão à escola, sem lhe explicar nada. A única reação do menino foi chorar sem saber o que lhe estava a acontecer. Seguidamente, foram ao Jardim de Infância buscar as duas meninas. Quando ele as viu, acalmou-se, mas ficou sem saber entender. Foram levados para um orfanato em S. João da Madeira, quando no Porto havia muitos e ficariam mais próximos da mãe. Susana nem teve tempo de se despedir. Quando chegou à escola e ao Jardim para se despedir, eles já tinham sido levados.
Recolheram os poucos pertences daquela mãe em sacos de plástico. Não teve direito nem a mais uma única dormida sequer.
Mas, o tribunal assim decidiu. As únicas referências que aquelas crianças tinham eram as pessoas da escola, a mãe e do lugar onde viviam. Foi-se-lhes retirado tudo.
Imagino que o Simão não deve ter cantado mais os ditongos durante muito tempo.
Só imagino, pois não sabemos mesmo o que lhes aconteceu.
Parece-me que aquela mãe, não tendo ninguém no Porto… acredito que deve ter sido acolhida por uma ponte qualquer…

(Baseado em factos reais.)

Eli Rodrigues

16 comentários:

Brown Eyes disse...

Êli conheci uma moça que vivia com alguém que tinha outra família, ela sabia e sujeitava-se a uma visita de vez em quando. Tinham uma filho. Nunca percebi bem como alguém pode viver assim. O amor é o culpado mas como se pode viver sabendo que a pessoa que se ama nos põe em segundo lugar, pouco ou nada podemos partilhar com ele já que está sempre ausente e incontactável, temos que resolver tudo sozinhas? Não será melhor estar sozinha? Eu preferia. Beijinhos

James Dillon disse...

Tenho andado alheado e por isso me penitencio,

se algum jantar de natal surgir na invicta conta comigo, agora os ares de Lisboa não me fazem muito bem,

:)


cumprimentos,
JD

Sexinho disse...

Numa altura da minha vida e acompanhando o meu namorado assisti num velório a uma cena digna de filme; uma senhora e uma menina absolutamente desconhecidas da familia e dos amigos que velavam o morto, aproximaram-se do caixão a chorar. A viúva pediu à filha que fosse saber quem eram e como conheciam o marido. A filha não tendo animo para o fazer pediu ao meu namorado que o fizesse.
E assim ficámos a saber da dupla vida do morto. Aquela era a sua familia secreta. Quanta tristeza...

Sexinho disse...

Numa altura da minha vida e acompanhando o meu namorado assisti num velório a uma cena digna de filme; uma senhora e uma menina absolutamente desconhecidas da familia e dos amigos que velavam o morto, aproximaram-se do caixão a chorar. A viúva pediu à filha que fosse saber quem eram e como conheciam o marido. A filha não tendo animo para o fazer pediu ao meu namorado que o fizesse.
E assim ficámos a saber da dupla vida do morto. Aquela era a sua familia secreta. Quanta tristeza...

S* disse...

Meu deus, que horror, que dor.

Manuel Luis disse...

Já não bastava o que lhe aconteceu, agora é julgada de um momento para o outro, se calhar sem ser ouvida!
Penso naquele maldito julgamento onde se cometeu um crime, agora dão-no como maluco, pilhas de gente e papeis. Gente assim não faz falta. Agora essa Mãe! E os filhos numa instituição? Coitadas não pediram para nascer nem para serem julgados e já andam por becos.
Muito sentido, conheço muitos casos idênticos.
Bj

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

sem palavras porque +e tudo muito triste....

Eli disse...

Brown Eyes

Eu também preferiria, mas ambas sabemos que as pessoas não têm todas a capacidade de se impôr, tal como outras...

Eli disse...

James Dillon

No ano passado fui ao da invicta. Quando for o próximo, lá estaremos! :)

Eli disse...

O Sexo e a Idade

Que tristeza mesmo... para todos! :S

Eli disse...

S*

Tal e qual, pensando naquelas crianças...

Eli disse...

Manuel Luís

Foi por isso mesmo que eu não quis deixar de escrever esta história tão bem real!

Eli disse...

© Piedade Araújo Sol

Pois é mesmo...ficamos assim a pensar mesmo nisso.

Diamantino disse...

Que história comovente! Infelizmente casos semelhantes acontecem amiúde. Os tribunais em vez de obrigarem o estado a ajudar uma mãe nessas circunstâncias, castigam os filhos, tirando-lhes a mãe e colocando-os numa espécie de prisão, quando talvez ficasse mais económico cederem uma casa à família para que as crianças num lar familiar.

Beijos

Diamantino disse...

Que história comovente! Infelizmente casos semelhantes acontecem amiúde. Os tribunais em vez de obrigarem o estado a ajudar uma mãe nessas circunstâncias, castigam os filhos, tirando-lhes a mãe e colocando-os numa espécie de prisão, quando talvez ficasse mais económico cederem uma casa à família para que as crianças crescessem num lar familiar.

Beijos

Eli disse...

Diamantino

Exatamente.

O pior é isto continuar a acontecer!